Vale o que está escrito

terça-feira, 31 de agosto de 2021 às 15:51

Colaboração: Carlos Alberto Goldani

Antes da pandemia, em tempos não tão distantes, os órgãos de imprensa supriam a escassez de notícias encomendando alguma pesquisa de opinião, para fornecer aos seus repórteres e âncoras material para ser divulgado ou comentado. De tempos em tempos perguntavam sobre a confiabilidade de serviços públicos e, além dos correios e servidores da justiça, uma contravenção sempre era muito bem conceituada. O jogo do bicho, uma loteria popular antes do monopólio oficial da CEF, era baseado em um conceito imutável, “Vale o que está escrito”. A população tinha uma fé inquebrantável nos contraventores.

Os recentes acontecimentos na MotoGP mostram que contratos são considerados de pouca credibilidade. Os desentendimentos da equipe Yamaha com Maverick Vinales, que algum tempo atrás haviam em comum acordo anunciado que o piloto não cumpriria a sua segunda temporada, desencadearam com os últimos acontecimentos uma atividade febril entre representantes do condutor e advogados. A dispensa do piloto com efeito imediato ocorreu que após a rodada dupla na Áustria, no GP da Estíria em uma atitude tresloucada o espanhol propositadamente excedeu o limite de giros do motor do seu equipamento. Como resultado foi necessário um rearranjo de pilotos, Franco Morbidelli que tem contrato com a Sepang Petronas está cotado para assumir a vaga na equipe oficial ao lado de Quartararo e o veterano Andrea Dovizioso está sendo especulado como provável companheiro de Valentino Rossi na equipe da Malásia para o resto desta temporada. Vinales aparentemente saiu ileso da refrega, já tem contrato para pilotar pela Aprilia em 2022.

Neste rearranjo de pilotos existem vínculos com patrocinadores que obrigatoriamente devem ser negociados. Enquanto pilotava pela LCR-Honda, Cal Crutchlow nunca cogitou em, mesmo eventualmente, assumir os controles de uma moto da equipe oficial Repsol-Honda em um GP.  A razão é simples, desde os tempos da Superbike britânica o inglês tem um patrocínio pessoal da Monster Energy e recusa a competir com um equipamento vinculado à Red Bull.

No primeiro teste oficial para o GP em Silverstone uma aparatosa queda de Marc Márquez mostrou uma deficiência/fragilidade do layout do circuito. A queda resultou em deslizar por uma área de escape de grama, insuficiente para dissipar a energia cinética do piloto, que voltou em outra área da pista. As áreas de escape devem ser dimensionadas para conter o conjunto piloto/equipamento sinistrados, e podem ser de asfalto, grama ou brita. No caso de brita, a preferência é por seixo rolado por não conter arestas. Este tipo de brita é encontrado em cursos d’água e em inglês é chamado de “rolling stones”.

Um adendo: A expressão “rolling Stone” é atribuída a Bob Dylan em um clássico da contracultura hippie, “Like a rolling Stone”. A ideia é que pedras rolantes não acumulam musgo semelhante a pessoas que não estabelecem raízes, e que não hesitam em perseguir seus sonhos mudando de vida e lugar de trabalho a cada momento. The Rolling Stones também é o nome de uma banda de rock britânica formada em Londres no ano de 1962, considerada como  um dos maiores, mais antigos e mais bem sucedidos grupos musicais de todos os tempos. Ao lado dos Beatles, são considerados a contribuição mais importante da chamada Invasão Britânica ocorrida no rock dos anos 1960. Os atuais componentes da banda já estão acima de 74 anos e sua vida pregressa oportuniza uma reavaliação da eficácia de uma vida regrada. Um engravidou uma modelo e apresentadora brasileira em uma de suas festas, outro pela indisponibilidade de opiáceo suficiente cheirou as cinzas do próprio pai, um terceiro trocou a esposa por uma garçonete russa de 19 anos e foi internado em uma clínica de reabilitação por alcoolismo. O quarto elemento, o mais discreto e que tinha a vida mais regrada, permaneceu casado com a mesma mulher por 57 anos e faleceu em 24 de agosto aos 80 anos de idade.

Voltando ao esporte a motor, este foi um fim de semana bizarro. Na tomada de tempo da MotoGP houve um fato estranho: uma pole que não foi válida. A MotoGP está desenvolvendo equipamentos sofisticados para auxiliar decisões polêmicas como, por exemplo, um piloto exceder os limites da pista durante uma volta rápida da classificação para o grid de largada. Nos minutos finais do setor 2 em Silverstone os registros mostraram um fato surreal, o piloto Jorge Martin passou quase meio segundo mais rápido que o melhor tempo até então registrado, e conseguiu como resultado um tempo absurdo na volta. Nada nos outros setores indicava um desempenho excepcional, mas o resultado final foram impressionantes quase 9 décimos melhor que a pole provisória de Pol Espargaro. Depois de desempenhos apenas razoáveis no FP2 e FP3, ser 9 décimos melhor que todo o grid era difícil de acreditar. Martin não ficou entusiasmado com seu feito e ao recolher a moto foi direto para o seu box, não rumou com o equipamento para o parque fechado. Sua equipe também não comemorou o feito como seria de se esperar.

Depois de vários minutos de hesitação a volta de Martin foi cancelada pelo prosaico motivo que ele excedera os limites da faixa de rolamento e os sofisticados instrumento da organização não puderam detectar, Jorge Martin simplesmente utilizou um atalho que não foi flagrado pelos sensores do traçado. Em verdade existem sistemas monitorando os limites de pista em vários pontos ao redor do circuito, mas todos eles estão focados na parte externa das curvas, onde os pilotos tentar conseguir alguns milissegundos retardando a freada e a abrindo demais a saída. Não há necessidade de monitorar o interior das curvas porque não há como obter alguma vantagem nestes trechos. Jorge Martin utilizou um atalho sabendo que a volta seria cancelada, porém ele procurou se colocar estrategicamente atrás de Marc Márquez para tentar usar o vácuo do oito vezes campeão do mundo em uma tentativa final. Paradoxalmente ele e Márquez colidiram durante a prova e ficaram ambos fora.

Ainda na prova de Silverstone ficou comprovada que a maior utilidade do livro de regras é estimular a criatividade dos engenheiros. O desenvolvimento dos dispositivos holeshot, que atua na altura da suspensão para melhorar o desempenho nas retas é mais um exemplo que o que está escrito está sendo seguido à risca, embora o espírito da regra, a razão pela qual ela foi criada, seja violado. As regras dizem claramente que os dispositivos de altura de do quadro só podem ser operados manualmente, ou pelo movimento da própria moto, entretanto todas as fábricas usam artifícios para burlar o que está escrito.

Trocando de duas para quatro rodas, o GP de Fórmula 1 na Bélgica foi uma homenagem à dramaturgia tupiniquim. Dias Gomes criou em 1985 na trama de Roque Santeiro a figura impagável da viúva Porcina que, segundo o roteiro, “foi sem ter sido”, ou seja, era viúva do herói local sem nunca ter sido casada. O GP da Bélgica foi uma prova sem disputas, a única na história onde não houve uma única ultrapassagem nas extensas e úmidas duas voltas de duração da prova, que foram feitas com o pace-car na pista. Por mais que se racionalizem motivos econômicos para justificar a pantomina, não passou de uma mal elaborada trapalhada dos organizadores. Já houve provas com condições tão ruins de tempo.  Niki Lauda abriu mão de um mundial, depois de ter sofrido um acidente horroroso em 1976 que resultou em diversas queimaduras, por que julgou que não havia motivo para correr tanto risco na prova final do campeonato, realizada abaixo de uma tempestade no Japão. Por falta de segurança na mesma prova Emerson Fittipaldi e outros pilotos, incluindo José Carlos Pace também abandonaram. Anos depois, já como dirigente da Mercedes, em um GP do Brasil, a sua preocupação era a prova, janelas de transmissão da TV, respeito ao público pagante e uma possível decisão do mundial de pilotos. Os valores mudam quando se arrisca a integridade de outros.

Para os que passaram (como eu) 4 horas na frente da TV esperando por uma disputa que não aconteceu, a decepção foi enorme.  Os otimistas diriam que houve inúmeras ultrapassagens, na verdade não houve nenhuma (nenhum número) para ser registrada, justo agora quando a FIA decide criar a premiação para o piloto com maior número de troca de posições durante uma prova. A Fórmula 1 está se tornando refém de interesses comerciais, mesmo que isto resulte em episódios ridículos como as premiações do GP da Bélgica 2021.

Carlos Alberto Goldani
Porto Alegre – RS

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