Um tempo, um carro, uma viagem curta

quinta-feira, 17 de setembro de 2020 às 13:19

De Tomaso Pantera GT5 S 1978

Colaboração: Antonio Carlos Mello Cesar

Sexta-feira, talvez a mais quente daquele ano, 1978 se bem me lembro, quase dezenove horas e o sol teimoso, ainda, brigando contra a noite. No princípio da tarde, uma típica chuva de verão, atroz, passageira, suficiente para causar desarranjos e por ás avessas o confuso trânsito paulista.

Dirigir o De Tomaso Pantera em ruas congestionadas ocasiona certo desconforto, embreagem placa única, um tanto dura, requer esforço no anda e para, primeira e segunda, além do volante pesado desprovido de assistência. Sem isolamento térmico eficiente, a cabine deixa-se invadir pela quentura do motor traseiro central, Ford Cleveland V8 330 HP 5.8 litros, quatro carburadores Holley corpo duplo. Cavalaria respeitável à época (0 a 100-6 s.).

Quarenta minutos na pandemia dos veículos entulhando as principais avenidas, rendem apenas cinco quilômetros. O automóvel apresenta sinais de estresse, primeiro falha, depois começa engazopar, exalando forte odor de combustível, a temperatura ultrapassa cem graus (cento e vinte faixa vermelha). De uma coisa tenho certeza, se morrer não pega mais, ou logo vai ferver.

A noite ameniza, sem excluir o calor abafado, transpiro bastante, misto ardume e nervoso, no interior do carro um verdadeiro forno. Preso em desagradável conjuntura, apelo para os sentimentos da máquina, acreditando haver empatia bilateral: “Por favor, aguenta firme, falta pouco”… ”Olha chegou à estrada, estamos livres de engarrafamento, só mais trinta Km e fim”.

Nesse tempo o caminho para Cotia feito pela Raposo Tavares, cortava uma região caracterizada por sítios, granjas e motéis que renderam a SP-270, alcunha de rodovia do amor. Primeiro deles, cujo nome era Play Boy, dissimulado meio cerrada vegetação marginal a pista, enfrentou sufoco com militares no poder. Sabe-se lá qual motivo, quiçá adeptos do sexo somente pós-matrimonio não entenderam aquilo como hospedagem, mas sim uma casa de fornicação, genuíno atentado contra moral e bons costumes.

Na rodovia mantenho 2.500 giros, a temperatura do motor abaixa para 90 graus, vidro aberto concede agradável sensação de frescor, o ronco forte, grosso, uniforme, denota perfeita equalização. Mostradores analógicos, espalhados pelo painel, pressão do óleo, combustível, voltímetro, etc., indicam saúde plena.

“Fiscalização, velocidade 50 km”, no posto rodoviário, alheio ao movimento, o guarda solitário descansa. Mais à frente, livre da observação policial em terceira marcha, piso fundo, seis mil giros passo a quarta, engate curto, preciso, 45 kgf. de torque pressionam meu corpo contra o banco, quinta marcha, continuo acelerando, velocímetro beira 200 km/hora (260 Vel. Max.). Melhor não abusar, outros motoristas trafegam na via, levanto o pé, atitude sensata.

Populares nos anos setenta, Fusca, Chevette, Brasília, Corcel-II, constituíam maioria nas ruas, também os Opalas quatro cilindros, mais econômico e barato que o irmão 4.1 litros. Dodge Dart e Ford Galaxie preguiçosos e beberrões, VW Passat ganhava simpatia dos consumidores, o pequeno Fiat 147, recém-lançado, tinha como novidade a correia dentada. Importação de veículos proibida desde 1974.

Pela estrada, sem forçar, ultrapasso um a um, vibração de comando e prazer. Feito criança fantasiada de super-herói, me entrego a devaneios, tal sorte que imagino Le Mans á noite, protótipos transpondo veículos da categoria GT com abusiva superioridade.

Imprópria nas manobras de estacionamento, em velocidade aumentada, trajetos livres, a direção mecânica mostra-se categórica, menos pesada, firme, transmite para o volante toda reação dos pneus, produzindo aquele efeito; carro na mão. Os bancos envolventes com acento raso, perto do assoalho, junto à suspensão dura, amortecedores Koni reguláveis, torna qualquer derrapada, solavanco, de pronto sentido.

A princípio, apenas dois faróis, ainda longe, mas chegando rápido, agora perto, a luz refletida no espelho estorva, portanto custo distinguir meu perseguidor, um Maverick amarelo, automóvel de “boy”, rebaixado, entrada de ar no capô, rodas largas. Por instantes hesito entre dar passagem ou apressar; saco, esse cara quer apostar corrida. O De Tomaso suplica baixinho: “Não me faça passar vergonha”.

Reduzo para quarta marcha, rotações estimuladas, 140… 160… 170 km, a reta breve antecede curva longa e traiçoeira, receio problemas, principalmente na sua metade, quando a traseira tende a escapar. Coração na boca, mergulho igual surfista pegando onda gigantesca, incerto se vai navegar até a praia.

Durante contorno pouquíssima inclinação da carroceria, os enormes pneus traseiros 345/45/R15 e diferencial auto-blocante, permite controlar uma pequena escorregada usando somente motor, sem mexer no volante, e aqui, não resisto à velha e surrada expressão: “Parecia sobre trilhos”. Que máquina! E o Maverick? Bem, pelo retrovisor, apenas um remoto par de faróis e desaparecendo.

Palo Verde, meu destino, condomínio bucólico para residências onde festejos celebravam um aniversário. Ainda que na parte externa da casa, era possível ouvir Deep Purple cantando “Smoking on the water”, tempos de Rock, vinil, fita cassete, aparelho de som dois em um, e caixas sonoras similares um pufe negro.

Antonio Carlos Mello Cesar
São Paulo – SP

Quer ver todos os textos de colaboradores? Clique AQUI

Os artigos publicados de colaboradores não traduzem a opinião do Autoracing. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate sobre automobilismo e abrir um espaço para os fãs de esportes a motor compartilharem seus textos com milhares de outros fãs.

Clique AQUI para fazer suas apostas esportivas

AS - www.autoracing.com.br

Tags
, , , , , , , ,

ATENÇÃO: Comentários com textos ininteligíveis ou que faltem com respeito ao usuário não serão aprovados pelo moderador.