Um documentário que não traz respostas

segunda-feira, 20 de setembro de 2021 às 11:54

Schumacher – Netflix

Por: Bruno Aleixo

Neste final de semana assisti ao documentário “Schumacher”, disponibilizado pela Netflix. O filme, produzido com o consentimento e apoio da família do piloto, procura contar a trajetória do heptacampeão na Fórmula 1 desde o seu início na categoria, em 1991, utilizando imagens de arquivo e muitos depoimentos de amigos, familiares, ex-chefes e ex-pilotos. E quando digo procura contar, é no sentido literal mesmo, já que, em duas horas de exibição, o que vemos são tentativas desesperadas de produzir lágrimas nos espectadores, por meio de uma história cheia de buracos, que não responde o principal: afinal de contas, quem é Michael Schumacher?

Antes de mais nada, vamos ao óbvio: trata-se de uma biografia autorizada e, portanto, chapa branca. Porém, mesmo retratos pintados a partir de fatos entregues por familiares e até pelo próprio biografado podem ser interessantes e até críticos. É o caso do documentário “Senna”, que evita polêmicas, mas é recheado de imagens interessantes e depoimentos reveladores. Ou, mais recentemente, da série “Arremesso Final”, que amplia o horizonte da história de Michael Jordan, trazendo um retrato competente da NBA dos anos 1990, com a participação do próprio Jordan admitindo seus erros e incoerências. Ora, goste-se ou não, Michael Schumacher foi o “dono” da Fórmula 1 durante pelo menos 10 anos, período conhecido como “era Schumacher”. Dava para fazer um trabalho espetacular contando a história da categoria, usando como pano de fundo a participação do piloto.

Mas não. Aparentemente os diretores Hanns-Bruno Kammertöns, Vanessa Nöcker e Benjamin Seikel pouco ou nada entendem de F1 e, para piorar, parecem não ter tido tempo suficiente para concluir a missão de retratar Schumacher. Com isso, o documentário nem entra (como deveria) nas polêmicas, como consegue a proeza de ser raso e superficial ao celebrar suas conquistas, não servindo sequer para dar a dimensão da grandeza de Michael Schumacher dentro da pista, o que é ridículo pensando no fato de que ele é um dos maiores da história (se não for o maior).

Apostando em uma óbvia estrutura linear, “Schumacher” já parte da chegada do alemão à F1 pela Jordan, sem oferecer qualquer explicação sobre como o piloto, de resultados inexpressivos na base e no mundial de protótipos, ganhou a chance na equipe de Eddie Jordan, para disputar o GP da Bélgica de 1991. Depois de um brevíssimo resgate de seu início no kart, já vemos Schumacher como uma grande estrela da F1, incomodando veteranos como Senna e Mansell, e vencendo corridas. Após a morte do brasileiro, Schumacher é alçado ao posto de destaque da categoria, confirmando a condição ao vencer dois títulos com a Benetton (e é curioso que a equipe seja retratada como menor pelo documentário, mesmo sendo um time em franco crescimento, desde o final dos anos 1980).

No entanto, todo esse processo é mostrado como se toda a ascensão de Schumacher tivesse se dado de maneira automática, quase que natural. E todos nós sabemos que não foi assim, já que a trajetória de Schumacher pode ser explicada por pontos altos e também baixos de sua carreira. Ora, Michael ficava até tarde com mecânicos, fazendo testes, reuniões, etc? Claro que sim, mas qualquer piloto de carreira vencedora tem essa característica. Ou vocês acham que Hamilton junta suas malinhas e vai embora assim que recebe o troféu de vencedor? Ou que Ayrton Senna chegava ao autódromo já de macacão e sapatilhas, para entrar no carro e largar?

Tendo em mãos um personagem vencedor e até mesmo bastante arrogante no início da carreira, os diretores se esquecem de características naturais do biografado e lançam mão de musiquinhas tristes e depoimentos supostamente comoventes para arrancarem lágrimas dos espectadores, o que soa ridículo, especialmente no caso dos depoentes. Jean Todt, por exemplo, solta uma frase totalmente falsa para falar sobre uma suposta avaliação que a Ferrari fez de Schumacher ao final de 1999, que qualquer um que entenda um mínimo de automobilismo sabe que se trata de uma mentira deslavada. E prefiro nem comentar o que Damon Hill diz sobre o acidente que decidiu o campeonato de 1994, pois quero acreditar que ele estava sob a mira de uma arma, porque não é possível.

Além disso, ainda que “Schumacher” até retrate bem como foi a chegada do alemão à Ferrari, desfazendo alguns enganos históricos, é inacreditável como, a partir de 2000, o filme aparentemente abandone a carreira do seu biografado, dedicando menos de um minuto para mostrar os títulos que ele ganhou a partir dali, até 2004. Na real, uma pessoa que nunca viu uma corrida de F1 na vida, vai chegar ao fim do filme sem saber ao certo quantos títulos Schumacher ganhou na F1. E, claro, vai ficar sem resposta para perguntas como: porque ele decidiu se retirar em 2006, mesmo ainda tendo lenha para queimar? E porque voltou em 2010? O que aconteceu depois do acidente em Silverstone/99? NADA disso é explicado pelo filme.

Há, claro, alguns poucos bons momentos. Um deles é a participação de Ross Brawn, que oferece um dos poucos depoimentos realmente reveladores e impactantes do filme, ao comentar a reação de Schumacher ao polêmico e vergonhoso acidente que decidiu o título de 1997 em favor de Jacques Villeneuve. E David Coulthard, que conta uma passagem conclusiva sobre a auto-confiança do alemão, ao relembrar os bastidores da briga que os dois tiveram na Bélgica em 1998. Além disso, tendo em vista que Schumacher nunca foi dado à muita exposição de sua vida pessoal, há boas imagens de arquivo dele em comemorações junto aos pilotos, mecânicos e familiares.

E é isso que nos traz aos últimos 10 minutos do documentário, que passa a retratar o acidente que o tirou do convívio público e que pouco sabemos sobre. Neste ponto, não há como não respeitar o sentimento de Corina, Gina-Maria e Mick Schumacher ao se referirem ao piloto, inclusive, muitas vezes, fazendo-o no passado, o que tira qualquer dúvida sobre a interação do heptacampeão com o mundo exterior. O destino de Schumacher, goste-se ou não dele, é um filme de terror, algo que não desejamos nem para o pior inimigo e fica claro a dedicação de todos em torno do piloto para manter sua privacidade, algo que, afinal de contas, ele sempre prezou.

E é por isso que um documentário, tendo em mãos um material tão rico no lado esportivo, poderia oferecer uma homenagem real a um ser humano falho (quem não é, afinal de contas?), mas espetacular ao volante de um carro de F1. Perderam a chance.

Bruno Aleixo
São Paulo – SP
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