Série Grandes Duelos “ Emerson Fittipaldi x Jackie Stewart

segunda-feira, 22 de novembro de 2010 às 22:31
Dois grandes campeões

“Esta disputa foi inesquecível” – disse Emerson Fittipaldi sobre seu duelo com Jackie Stewart, quando do lançamento de um DVD com imagens de seus títulos na F-1, ano passado. De fato, durante as quatro temporadas em que dividiram o grid, Jackie e Emmo colecionaram disputas incríveis e momentos que entraram para a história da categoria. A inteligência dos dois pilotos, capazes de dosar velocidade com estratégia, deixou a torcida de pé nas arquibancadas. De fato, parecia uma partida de xadrez jogada por sobre uma bandeira quadriculada.

Quando Emerson chegou à F-1, em 1970, pilotando o terceiro carro da Lotus, Stewart já era o maior piloto do mundo. Havia conquistado o título de 1969 a bordo de um Matra-Ford e estava lutando contra Jochen Rindt, companheiro de equipe do brasileiro, e Jacky Ickx, da Ferrari, pelo título da temporada. Sem sombra de dúvidas, Jackie representava o futuro da categoria, com seu visual cabeludo a la Beatles, seu faro comercial que servia como um ímã para patrocinadores e sua até então ingrata luta por segurança.

Um dos primeiros pilotos a usar capacetes que protegiam toda a cabeça e a exigir que seus carros tivessem os desconfortáveis cintos de segurança, Jackie havia sentido na pele os
riscos de pilotar na F-1 daquela época. Um ano após sua incrível estréia pela BRM, quando terminou o campeonato de 1965 em terceiro lugar, atrás apenas de Jim Clark e Graham Hill, o jovem

Jackie Stewart

Stewart sofreu o mais grave acidente de sua vida, na pista de Spa-Francochamps. Debaixo do maior aguaceiro, seu carro rodou e acabou se chocando com um barranco, o que produziu um perigoso vazamento de combustível. Para sua sorte, Hill e Bob Bondurant haviam rodado há alguns metros de distância, e partiram para o socorro do escocês. Durante meia hora, os dois pilotos lutaram para arrancar Jackie do carro, mergulhado em gasolina. O que se viu em seguida parece até roteiro de comédia, hoje em dia. Graham e Bondurant levaram o combalido Jackie para a casa mais próxima, onde uma freira horrorizada pôde ver os dois homens despindo o escocês de seu macacão ensopado de combustível. Fora o grito histérico daquela senhora, Jackie ainda precisou ser levado na caçamba de uma caminhonete para o posto médico mais próximo, onde esperou por horas no chão, sobre uma maca, entre um monte de bitucas de cigarro. Por sorte, sua lesão na coluna não era tão séria quanto pareceu num primeiro momento, e ele foi capaz de se recuperar completamente; de qualquer maneira, aquele episódio serviu para lhe mostrar o estado calamitoso que estava a F-1 e o risco que os pilotos corriam a cada prova.

Emerson foi introduzido a este perigo bem cedo. No Grande Prêmio da Itália de 1970, sua terceira corrida, ele perdeu o controle de seu Lotus nos treinos livres e escapou por pouco de se quebrar todo numa forte pancada. No sábado, Rindt, pilotando sem asas para aumentar sua velocidade, faleceu ao bater a toda velocidade no guard rail durante a qualificação. O então líder do campeonato, mentor de Emerson, estava morto, mas a corrida transcorreu no dia seguinte, como dizia o script.

Jackie ficou chocado com a cena, e não teve vergonha de admitir que teve dificuldades para entrar em seu carro por não conseguir segurar o choro. Este comentário, entre outros tantos do escocês em nome da segurança, serviram para lhe trazer a imagem de medroso e covarde por parte da imprensa.

Sem dúvida, o impacto daquele momento chocou Fittipaldi. Há poucos meses atrás, ele ainda estava competindo na F-3 Inglesa, surgindo como uma tremenda zebra no topo da tabela. Agora, após a morte de Rindt, havia sido alçado ao posto de primeiro piloto da mítica equipe Lotus, com a responsabilidade de carregar toda a expectativa que o Brasil inteiro depositava em seu maior ídolo do automobilismo.

O incrível controle que Emerson tinha sobre seu carro e sua capacidade de pilotar suavemente em qualquer pista ou condição permitiram-lhe continuar sua escalada rumo ao sucesso. Na prova final daquele ano, em Watkins Glen, Emmo venceu e garantiu o título póstumo para Rindt.

No ano seguinte, o brasileiro ganharia experiência, enfrentando Jackie cada vez mais de igual para igual. Mas, a bordo de um Tyrrel-Ford preparado com cuidado pelo seu Ken, Stewart não deu margem para a concorrência e venceu o título

Emerson Fittipaldi

de forma incontestável. Os riscos continuavam a todo canto, mas o escocês mostrava que a consciência do problema não afetava sua velocidade. Emerson, ainda com 24 anos, passou a escutar com atenção as palavras do escocês de boné listrado, e mostrou sua simpatia pela luta por segurança. No final daquele ano, o outro grande defensor da causa, Jo Sifferd, falecia numa prova extra-campeonato em Brands Hatch. “Ele tinha lutado tanto pela segurança e agora era mais uma vítima”, lamentou Jackie Stewart. 1972 foi o ano de ouro de Emerson. Sua Lotus 72D esteve imbatível durante o ano todo, conquistando 5 vitórias inquestionáveis e permitindo que o brasileiro abrisse uma diferença monstruosa para o resto do grid. Tudo dava certo, e Emerson soube explorar ao máximo a qualidade daquele famoso bólido preto e dourado, tão veloz quando frágil. Collin Chapman, o genial chefe da equipe inglesa, era um projetista criativo e inovador, mas que não pensava duas vezes em ganhar preciosos segundos em detrimento de maior proteção aos seus pilotos. Compensava esta atitude deliberada com uma forte relação de amizade com seus comandados, o que apenas lhe trazia mais pesar quando um deles falecia ao volante de seus carros. Foi assim com Jim Clark e Jocken Rindt. A sua simpatia com Emerson chegou a um ponto em que Collin pediu, abertamente, para que o brasileiro não se envolvesse demais com ele, pois a dor das perdas anteriores havia sido muito forte.

Dureza você ouvir palavras deste tipo justo de seu chefe de equipe. Jackie tinha outro tipo de relação com Ken Tyrrel, com maior cumplicidade e

Emerson Fittipaldi – Argentina 1972

abertura, numa simbiose interessante. Mas o stress daquele ambiente perigoso e carregado acabou com a saúde de Stewart. Um sujeito hiper-ativo, por decorrência da dislexia que o acompanhava desde criança, o escocês acumulava responsabilidades o ano todo, seja nas pistas, testando ou competindo, seja fora delas, em intermináveis compromissos com patrocinadores. Seu diário parecia a maior doideira: numa mesma semana, era capaz de correr domingo na Inglaterra, de F-1, ir testar seu Tyrrel por cinco dias seguidos na África do Sul, viajar um monte de horas para chegar na Califórnia para correr uma etapa do campeonato de turismo CanAm, e ainda aproveitar todas as oportunidades possíveis para fazer uma média com os patrocinadores.

Isso acabou lhe rendendo uma úlcera, que o levou a ser internado de emergência após uma hemorragia interna. A imprensa não perdeu a chance e apelidou aquela úlcera de Fittipaldi. Quando voltou para as pistas, Emerson já estava confortável na liderança, e seguiu para se tornar o piloto mais jovem a conquistar um título da F-1, recorde que mantém até hoje.

“Jackie é muito tenso, isso vai acabar com sua saúde”, alertou Emmo. Realmente, quando o assunto era autocontrole, ninguém superava o brasileiro. É preciso muito sangue frio para utilizar a sua então tática de largada: mesmo sempre largando nas primeiras filas, Fittipaldi partia com imenso cuidado, permitindo que outros pilotos o ultrapassassem, de forma a poupar a embreagem para as voltas finais. Por isso mesmo, o carro do brasileiro conseguia vencer corridas em que outros ficavam pelo meio do caminho.

Sua manha para ultrapassar Jackie, seguramente um cara rápido e que lutava a todo custo para manter sua posição, era abusar da paciência. Grudava em sua traseira e ficava lá pelo tempo que fosse, até que Jackie desse uma bobeada. O escocês reclamava que o carro de Emerson, por ser todo preto, atrapalhava a noção de distância quando visto pelo espelho retrovisor. Desta forma, Emmo conseguiu boas ultrapassagens sobre o rival, garantindo diversas vitórias e o mundial.

A mesma tocada avassaladora de Fittipaldi continuou no começo de 1973. Foram 3 vitórias em 4 provas, inclusive no primeiro Grande Prêmio oficial do Brasil. Parecia que o brasileiro seria imbatível, mas sua sorte mudou a partir da metade do ano, onde passou a registrar vários abandonos. A decisão de Collin Chapman de contratar um piloto de alto nível para pilotar o segundo Lotus, Ronnie Peterson, só piorou as coisas, tirando pontos preciosos do brasileiro. A gota d’água foi o GP de Monza, em que um Emerson ainda com esperanças de conquistar o título viu-se em segundo lugar atrás de Peterson a corrida toda, esperando que a combinada ordem dos boxes permitisse aos pilotos mudar de posição. As encrencas com Chapman esgotaram a paciência de Emerson, que acabou assinando com a McLaren para a temporada seguinte.

Aproveitando-se do imbróglio na Lotus, Stewart usou toda a sua experiência para ganhar seu terceiro título mundial, com antecedência. Desde

Jackie Stewart 1972

o começo do ano, o escocês já havia avisado Ken Tyrrel que esta seria sua última temporada, por estar extenuado com o ritmo que levava sua vida. Este segredo foi mantido a sete chaves até mesmo dentro da equipe; o segundo piloto, François Cevert, nem tinha idéia que seria o primeiro piloto da equipe no ano seguinte. Quando recebeu um convite para pilotar a Ferrari em 1974, o francês boa pinta foi convencido a desistir da idéia por Jackie, que lhe disse que aprenderia mais correndo com ele por mais um ano. O carinho que Stewart tinha por Cevert, seu protegido, era mesmo muito grande. Desta forma, é compreensível o choque do tricampeão após o acidente que roubou a vida de François, nos treinos qualificatórios do GP do EUA. Seria a última prova do ano, e a centésima da carreira vitoriosa de Stewart. A batida foi gravíssima, tendo o jovem francês sido degolado por um guard-rail mal montado. Um dos primeiros a chegar ao local foi o Emerson, que ficou chocado com a cena. O brasileiro, posteriormente, afirmou que aquela imagem de Cevert o perturbou durante muitas noites depois.

Jackie decidiu empacotar suas coisas e abandonar os EUA e a F-1 após a confirmação da morte de seu pupilo. O acidente esgotou suas forças para continuar a competir. Aquela decisão surpreendeu a imprensa e a torcida, pois o escocês estava no auge de sua forma, mas apenas serviu para mostrar, mais uma vez, o homem que era John Young Stewart.

Sua despedida das pistas não foi em vão. Emerson levantou o bastião da defesa pela segurança nas pistas e, nos anos que se seguiram, usou seu status de bicampeão da F-1 para defender uma enérgica mudança na mentalidade dos donos de equipe e dos proprietários de circuitos.

Estes dois mitos do automobilismo ousaram levantar a voz contra a estúpida conivência dos cartolas com a morte em série de pilotos pelas pistas. Naqueles anos do começo da década de setenta, as estatísticas mostravam que um piloto que corresse cinco temporadas tinha duas chances em três de falecer nas pistas. As equipes médicas eram uma piada, e os esforços para maior proteção nas pistas eram rechaçados por importarem em maiores custos aos organizadores. Por conta da luta que enredaram, Emerson e Jackie foram muitas vezes acusados de medrosos e antiprofissionais, quando na verdade eram exatamente o oposto. Seus esforços valeram a vida de inúmeros pilotos nos anos que se seguiram e, se a segurança absoluta na F-1 é uma ilusão, com certeza padrões razoáveis merecem ser respeitados. Ninguém entra numa pista para se suicidar; a F-1 não é uma corrida de bigas romanas.

Parabéns para Emerson Fittipaldi e Jackie Stewart: campeões nas pistas, heróis fora delas.

Olavo Bittencourt Neto
olavo@autoracing.com.br

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