Os três pilotos fora da casinha

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023 às 12:35

Largada GP do Brasil 1972 – A primeira vez

Por: Adauto Silva

Os confrades que acessam o Autoracing com uma certa frequência sabem que eu acompanho Fórmula 1 desde 1972, quando meu pai me levou no primeiro GP do Brasil que nem era válido para o campeonato.

Sabem também que naquele dia peguei o vírus do automobilismo – algo que não tem cura e nem vacina – muito pelo fato de termos invadido o box depois da corrida e o Emerson ter passado a mão na minha cabeça e dito “aí garotão”.

Isso é o tipo de coisa que nunca mais se esquece na vida, pelo menos foi o meu caso. A partir daquele dia eu gastava toda a minha mesada – e mais o que conseguisse com parentes – em tudo que envolvesse automobilismo, kart e principalmente Fórmula 1.

Comecei a trabalhar cedo – aos 14 anos – e meu minguado salário também ia para as mesmas coisas.

A não ser em 1982, depois de Gilles Villeneuve ter nos deixado num acidente brutal em Zolder, ano que não assisti mais nenhuma corrida e joguei fora praticamente tudo o que eu tinha sobre automobilismo, incluindo meu macacão, capacete e recortes de jornais e revistas das minhas aparições por ter vencido corridas de mini-carro e de kart, eu assisti todas as corridas de Fórmula 1 nos últimos 50 anos.

Nesse tempo todo vi uma infinidade de pilotos muito bons, alguns excelentes e poucos realmente geniais.

Fora da casinha

E há uma categoria de pilotos que eu chamo de “fora da casinha”. Mas o que é isso?

Pilotos fora da casinha são aqueles que conseguem ser muito, mas muito rápidos guiando acima do limite.

Guiar acima do limite, ao contrário do que muita gente pensa, não torna um piloto mais rápido, mas sim mais lento. É o famoso “overdrive”, algo muito fácil de se cometer guiando em pista um carro que você se sente muito seguro.

Guiar acima do limite é o que praticamente todos os pilotos medianos, em qualquer categoria, fazem muito. E é por isso que eles são apenas pilotos medianos, medíocres.

O bom piloto comete muito pouco overdrive, o excelente quase nunca e os genais nunca, ou praticamente nunca.

Cometer overdrive te deixa lento porque o relógio anda para a frente e o overdrive faz você ir perdendo tempo andando de lado, arrastando  pneus nas freadas ou reacelerações. Quanto mais acima do limite você anda, mais de lado você fica e mais tempo você perde.

O ideal é sempre ter a sensibilidade instantânea dos pneus e andar no limite da sua aderência. Fazer curva com um carro é uma ação da física, é basicamente transferência de peso. Quando você freia para entrar numa curva o peso de todo o carro é transferido para a dianteira dele, você esterça o volante e esse peso vai para a roda dianteira de fora da curva. No meio da curva (Apex) o peso está aproximadamente 60% na roda dianteira de fora e 40% na traseira de fora. Aí você acelera e o peso vai para a traseira do carro, primeiro para a roda traseira que está por fora, depois para ambas rodas traseiras

É a aderência geral do carro que determina isso volta após volta. E o piloto tem que entender isso guiando o carro instintivamente, pois não dá tempo para pensar em tudo que envolve a aderência durante uma volta de corrida ou de classificação. Mas foram e são muito poucos os pilotos que tiveram ou tem essa sensibilidade extrema.

Então hoje vou falar um pouco dos três únicos pilotos que essa regra de ouro valeu pouco e nunca ninguém conseguiu explicar como eles eram tão rápidos quebrando essa regra quase que constantemente, balançando muito o carro e fazendo correções instintivas antes de perderem tempo e consequentemente o carro.

Coincidentemente são os três pilotos mais espetaculares que já vi, mais prazerosos de se assistir. Pena que na época deles não havia tantas câmeras onboard como hoje…

Ayrton Senna, Nigel Mansell e Juan Pablo Montoya

Senna, Mansell e Montoya. Ninguém explica como eles conseguiam frear tão depois dos outros e reacelerar tão antes dos outros ganhando tempo ao invés de perder e ainda sem sofrerem seguidos acidentes ou rodadas. Claro, eles batiam às vezes, rodavam também, mas não mais que os outros. Na verdade, eles rodavam e batiam até menos do que era considerado “normal” na Fórmula 1 no tempo de cada um deles.

Montoya

Montoya antes da Fórmula 1 era realmente exagerado e tinha a fama de “win or wall” (ganhar ou bater). Mas ele mesmo me contou que teve um dia com Jackie Stewart (Frank Williams “sugeriu” isso antes de contratá-lo) numa pista na Inglaterra algum tempo antes de chegar na F1, na Indy ainda.

Stewart, um dos pais “modernos” dessa prática exposta acima, que teve seus grandes expoentes em Fangio e Clark, chamou Montoya para um “dia de pista”, pegaram um carro do BTCC com um acerto bem “preso” para ficar o mais parecido com um monoposto e foram andar.

Primeiro Stewart deixou Juan Pablo pilotar. Ele deixou Montoya dar algumas voltas sozinho no carro para se acostumar e depois parou no box. Colocaram pneus novos, Stewart sentou do lado e disse para Montoya dar uma volta de aquecimento e depois dar sua melhor volta.

Montoya fez exatamente isso e voltou para o box com Stewart sentado no banco do carona. A conversa foi mais ou menos assim:

Stewart: E então, gostou da sua volta?
Montoya: Gostei muito, acho que fui o mais rápido (haviam mais 4 pilotos pretendentes para a F1 naquele dia com Stewart).
Stewart: Sim, você foi o mais rápido, mas não o bastante!
Montoya: Como assim? Não dá para baixar esse tempo, dei tudo o que o carro pode!
Stewart: Não, você deu mais que o carro pode, muito mais!
Montoya: Então…
Stewart: Então que você andou muito de lado, arrastou os pneus demais nas freadas, fez a maioria das curvas arrastando e também patinou nas saídas de quase todas as curvas. Com isso você perdeu tempo. E numa corrida com várias voltas, seus pneus vão detonar muito rápido e você ficará extremamente lento tentando compensar a falta de aderência. Se você guiar direito pode melhorar esse tempo mais de meio segundo.
Montoya: Pode ser, mas eu fui o mais rápido.
Stewart: Vamos trocar, eu vou guiar agora e você vem aqui no banco do carona.

Montoya me contando…

Claro que as palavras não foram exatamente essas, afinal faz tempo. Mas foi muito próximo do que está abaixo!

“Quando ele disse isso pensei que ele estivesse brincando. Ele tinha tipo 60 anos e eu tipo 25. Estava no meu auge físico, reflexos perfeitos e tal. Ele não guiava frequentemente um carro de corrida há décadas! Mas claro, fiz o que ele pediu e trocamos. Os mesmos pneus novos foram trocados para ele também.”

“Então partimos. Ele deu a volta de aquecimento e acelerou na segunda volta. Mas a gente parecia lento, o carro quase não balançava, ele freava praticamente no mesmo lugar que eu, mas com suavidade, entrava na curva esterçando menos o volante e o pneu parecia mais grudado, não arrastava, o começo da reaceleração era menos intenso que o meu. Achei que realmente estávamos bem mais lentos do que na minha volta. A única coisa que me chamou a atenção foi que a tomada que ele fazia para as curvas era ligeiramente diferente da minha, mas quase imperceptível.”

“Então paramos e conferi o tempo na telemetria do painel do carro. Não acreditei no que vi. Ele tinha sido quase 1 segundo mais rápido que eu. Não parecia possível, mas era.”

“Então fiquei lá. Os outros foram embora e eu fiquei lá com ele. Conversamos por horas, primeiro dentro do carro e depois fora. Ele pegou um lápis e papel para me mostrar algumas coisas, me disse porque fazia aquela tomada minimamente diferente da minha. Me explicou que eu não teria a menor chance de grande sucesso na F1, caso não mudasse um pouco minha tocada. O que eu devia fazer, como devia fazer, como treinar e os pilotos a observar mais nas transmissões.”

“Claro, algumas semanas depois eu voltei lá, mesmo carro, pista e pneus. O clima estava um pouco diferente, mas consegui fazer o tempo dele. Foi difícil, já que era diferente do que sempre havia feito na vida. Eu precisava pensar o tempo todo enquanto guiava e assim foi por muitos meses.”

“Eu não fiquei com a tocada dele, mas a minha refinou muito, fiquei mais rápido principalmente em corrida. Meus instintos foram se acostumando e acho que fiquei com uma tocada intermediária do que era antes e depois daquele dia. Acho que foi o dia mais esclarecedor que tive no automobilismo, que professor fantástico que ele foi para mim.”

Senna

Não tenho uma teoria para Ayrton Senna. Para mim ele era um extraterrestre, tinha uma compreensão de aderência inexplicável, uma coordenação motora muito acima do normal e uma obsessão quase doentia pela vitória.

Era um mestre em relação de cambio e mantinha o motor o tempo todo lá em cima até nas curvas, quando bombava o acelerador sem parar enquanto freava, trocava marcha e pisava na embreagem num “punta-tacco contínuo” até a reaceleração plena. A Honda sempre disse que ninguém sabia usar tão bem o motor como Senna. Mas isso são outras características que não tem tanto a ver com a noção simplesmente absurda que ele tinha de aderência. Martin Brundle, seu maior adversário antes da F1 disse que Senna parecia saber qual era a “aderência fina” de cada trecho da pista antes de passar por ele, ou seja, ele também não tem uma explicação lógica.

Mansell

Minha teoria sobre o Leão é que faltavam muitos parafusos na cabeça dele e ele não tinha noção de perigo, ou se tinha era muito pouca. Eu imagino que o pensamento dele era pura e simplesmente “quanto mais tempo no acelerador eu fico, mas rápido eu vou” e por alguma razão ele conseguia fazer correções espíritas no volante e no acelerador ao mínimo sinal de perda de aderência.

Mansell não pensava, não estudava, não olhava a telemetria do companheiro de equipe e não gostava muito de treinar. Era um piloto quase que 100% instintivo. Talvez por isso tenha conquistado só um título, pois tinha velocidade para muito mais. Teve um pouco de azar também.

Uma última observação é que só não coloquei Gilles Villeneuve nessa lista porque ele batia demais, apesar de adorar assisti-lo. E Hamilton também está fora dela porque ele só guiou assim nos dois primeiros anos de sua carreira na F1, depois foi devidamente “domesticado” pelo sistema.

Adauto Silva
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