O esporte motorizado na mira da justiça

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016 às 15:09
Motor Cycle Industry Association

Motor Cycle Industry Association

Colaboração: Carlos Alberto Goldani

Em uma época onde ministros e decisões do STF frequentam o noticiário quase todos os dias, a leitura de portais especializados em esportes e mídia eletrônica de variedades do continente europeu é preocupante. O tradicional “The Times” de Londres publicou recentemente manchetes que advertiam sobre um desastre iminente: “A regra de seguros da União Europeia vai destruir os esportes motorizados no Reino Unido”. É necessária a contextualização, na quarta-feira (21/12) a MCIA (Motor Cycle Industry Association), a ACU e a AMCA (representando provas de motovelocidade em estradas e circuitos) publicaram um comunicado conjunto, alertando que os esportes motorizados poderiam ser inviabilizados em território britânico devido a uma sentença emitida pelo tribunal da comunidade européia, sediado em Luxemburgo.

A decisão decorre de um acórdão no processo Vnuk/Triglav, número C-162/13, do Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia, conhecido simplesmente como diretiva Vnuk. É referente a um caso de 2013 e envolveu um trabalhador agrícola esloveno, Damijan Vnuk, que solicitou a cobertura da apólice de seguro de um trator para um sinistro ocorrido enquanto trabalhava em uma fazenda. Os tribunais inferiores da Eslovênia rejeitaram as suas alegações, mas o Supremo Tribunal do país decidiu submeter o caso para a Corte Europeia de Justiça (ECJ).

O caso evoluiu até afetar ao esporte motorizado na Europa porque o acidente de Vnuk aconteceu em uma propriedade restrita ao público. A legislação da União Europeia exige, para permitir a livre circulação de veículos entre os países associados, que veículos automotores devem dispor de seguro de responsabilidade civil, mas não é explícita em relação à sua validade para sinistros ocorridos em vias privadas. Esta omissão foi a justificativa para a Suprema Corte da Eslovênia remeter o caso ao tribunal europeu.

No caso Vnuk, a ECJ interpretou a legislação vigente no sentido de que qualquer veículo motorizado, seja para uso em ambiente público ou privado, deve ser coberto por seguro para indenizar possíveis vítimas de sinistros. Na letra fria da lei, também é aplicável aos veículos de competições, sejam eles carros ou motos, em disputas em circuitos, traçados de rua, estradas públicas ou particulares. Esta interpretação significa, por exemplo, que em cada rodada europeia da MotoGP, todos os pilotos, do campeão Marc Márquez até Rei Sato, o último classificado na Moto3 em 2016, teriam de estar segurados contra qualquer dano que causassem a outros pilotos em um acidente na pista.

Não há dúvidas que profissionais como Valentino Rossi e equipes de fábrica como a Yamaha podem facilmente arcar com o custo deste seguro, mas é mais uma despesa para equipes amadoras ou com pouco patrocínio. Apólices para iniciantes podem ser proibitivamente caras e provavelmente o número de corridas e pilotos no grid reduza sensivelmente. Sem eventos constantes a operação de uma pista dedicada não é economicamente viável, nas condições atuais a entidade que administra Silverstone, por exemplo, já é deficitária, se fosse forçada a confiar unicamente na renda da MotoGP e F1, estaria falida em pouco tempo.

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A decisão das entidades em emitir um comunicado conjunto foi alavancada por uma ação do governo britânico, que abriu formalmente em dezembro uma consulta popular para incorporar o resultado do julgamento Vnuk na legislação do Reino Unido. Ao divulgar o comunicado, o MCIA garantiu a exposição máxima para o problema, monopolizou manchetes e convocou as pessoas para participarem do processo, criando um ambiente alarmista. A realidade é que, embora exista uma causa genuína para preocupações, as chances de afetar significativamente o motociclismo profissional na Europa estão muito próximas a zero, até porque os desportos motorizados são uma parte importante da economia, por outro lado as implicações da diretiva Vnuk são tão amplas que exigem um processo de reformulação.

No Reino Unido a extensão do dano relacionado com a decisão da ECJ é potencializada porque as indenizações resultantes de lesões causadas por sinistros tendem a ser muito mais elevadas que em outros países na Europa, o custo de apólices, portanto, é muito maior, quase proibitivo. Sem legislação específica e detalhada, a securitização também seria extremamente sensível à fraude: dois pilotos podem simular um acidente, um pode alegar uma lesão, apresentar uma demanda de indenização e, em seguida, compartilhar o pagamento do seguro com o outro.

Embora o Reino Unido possa ser o mais afetado pelo diretiva Vnuk por causa de peculiaridades da lei britânica, o caso também tem implicações em toda a Europa. Os outros 27 Estados-Membros da União Europeia terão que implementar legislações apropriadas para fazer face a obrigação do seguro, isto pode ter um efeito devastador não só no Reino Unido, mas especialmente em países tradicionais no esporte da velocidade como Espanha, Itália e Alemanha.

A UE reconhece os possíveis desdobramentos da interpretação da lei e está tomando medidas para conter seus efeitos indesejados. A intenção da diretiva nunca foi impor um seguro a todos os tipos de veículos a motor, onde quer que sejam utilizados, o objetivo foi garantir que qualquer pessoa que fosse vítima de um acidente de trânsito seria capaz de obter uma indenização. Parece óbvio que a decisão do tribunal é orientada para cobrir o tráfego normal em vias públicas, mas a sua redação abrangente permite interpretar que inclui qualquer veículo automotor em qualquer local, em vias públicas ou privadas. Isso significa, além de motos e carros de competição, Segways em aeroportos, scooters de mobilidade em centros comerciais, empilhadeiras em armazéns, tratores em pátios de obras e carrinhos elétricos em campos de golfe. Forçar todos esses veículos a ter apólices para garantir a indenização de terceiros é absurdamente caro.

Existem, no Reino Unido, fundos de compensações financiados por contribuições do seguro de automóvel, criados para cobrir danos causados em condições não previstas pela legislação. Sem modificar a diretiva do ECJ, os motoristas normais poderiam estar indenizando indiretamente jogadores derrubados acidentalmente por carrinhos de golfe, agentes da Fedex atropelados por empilhadeiras ou até Jorge Lorenzo atingido por Andrea Iannone em uma disputa na MotoGP.

Até que a UE modifique o texto da obrigatoriedade de seguro para veículos automotores, todos os estados membros se encontram num buraco negro legislativo. Originalmente o Parlamento Europeu deveria emitir uma diretiva até o terceiro trimestre de 2016, já estamos no final do quarto trimestre e nenhuma publicação foi emitida. O trabalho está em curso, mas precisa ser apressado, se nada for feito, não vai acabar com as competições na União Europeia, mas com certeza deve criar problemas.

Carlos Alberto Goldani
Porto Alegre – RS

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