Na catedral de Monza, o show de três gerações

quarta-feira, 14 de setembro de 2011 às 18:25

Largada Monza 2011

Largada em Monza 2011 – Repare na angulação das asas traseiras

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Se ainda havia quem insistisse que Sebastian Vettel ainda não é um piloto completo, Monza os desmentiu. A principal restrição ao alemãozinho – a de só saber vencer largando na frente – se esvaiu com sua atuação magistral na mais simbólica das pistas. Foi na quinta volta, na curva Grande, quando ele tomou a liderança da Ferrari de Fernando Alonso pela trajetória externa, com as duas rodas esquerdas fora da pista. Isso a 290 quilômetros por hora e sem a menor necessidade de vencer para manter seu posto de virtual campeão mundial desta brilhante temporada. Se para alguns céticos ele ainda não era completo, agora é.

Para negá-lo, terão de buscar falhas eventuais, mas logo ouvirão argumentos contrários, apoiados na beleza das recuperações. Como se viu nas provas de classificação, na corrida e até na comemoração. Dois grandes momentos marcaram mais essa obra prima: começa o Q3, Vettel sai dos boxes a pleno e, logo após um pequeno erro na segunda curva de Lesmo, as rodas traseiras de seu carro escorregam na veloz segunda perna da Ascari. Corrige a derrapagem e a transforma em um power slide espetacular, como se de repente aquela besta de mais de 800 cavalos se houvesse transformado nos karts em que passou a infância.

Recomeça a corrida. Segundo colocado, ele sabe que precisa se livrar rapidamente da Ferrari de Alonso. Ferrari, Alonso e Monza, um conjunto que exige ousadia e precisão. Saem da curva Parabólica juntos, Vettel pega o vácuo e força Alonso a se defender freando por dentro para entrar na primeira chicane; por isso, perde um pouco na saída e Vettel se mantém colado. Os dois entram na curva Grande e o espanhol se coloca no meio da pista, pronto para mudar de lado, mas Vettel o ignora, acelerador no fundo, escolhe o lado esquerdo para chegar à próxima curva por dentro.

Alonso tenta a intimidação, converge para a esquerda, reduz o espaço, mas de nada adianta: com duas rodas na grama, o alemãozinho mostra que é feito do mesmo material dos grandes campeões. Lado a lado, os dois chegam à freada da segunda chicane, a Variante della Rogia, a mais de 300 por hora. Vettel consuma mais do que a ultrapassagem, reforça sua imagem de piloto completo, que também sabe conquistar na pista as posições de que precisa. E segue em frente para conquistar sua oitava vitória em 13 corridas. Ao fim do GP da Itália, conta mais de 500 voltas na primeira posição ao longo do ano; nenhum dos seus adversários chegou sequer a 100.

As provas de sua enorme qualidade se sucedem, ficam mais visíveis dia a dia. Como aquele erro na primeira volta do Q3. Para muitos, poderia ser o início de uma rodada ou um abalo em sua imensurável autoconfiança. Não para ele. De volta aos boxes, consulta a telemetria e conclui que, se aquela volta havia sido feita em 1min22s613, sem os mesmos erros a pole position estaria garantida.

Lá foi ele, refreia moderadamente seu impulso agressivo e vira 1min22s275. Um golpe sério para Lewis Hamilton, que encerrara os treinos da sexta-feira certo de que tanto ele quanto Jenson Button tinham carros para vencer o Grande Prêmio da Itália. Ele havia fechado a sexta-feira com o melhor tempo, marcado, aliás, na primeira sessão, quando a temperatura estava bem abaixo do que ocorreria em todas as tardes do fim de semana. Temperatura mais baixa significa ar mais denso, que é igual a asas mais eficientes.

No segundo, quando o asfalto já chegava a um calor de 41 graus, o mais rápido foi Vettel; mas Hamilton, o segundo a apenas 0s036, se mantinha otimista. Foi no terceiro, na manhã do sábado, que um enorme grilo se instalou atrás da orelha do inglês. Vettel em primeiro, seguido por seu companheiro Mark Webber, ele mesmo já distanciado do alemãozinho 0s364. A seguir vinha Felipe Massa e só aparecia o nome de Hamilton, a 0s571. Era mais um sinal de que a pouca diferença que separava McLarens e Red Bulls no primeiro dia havia se agigantado no segundo.

Veio a classificação. Na primeira sessão, a Q1, Hamilton se impõe, 1min23s976, mas Vettel é segundo, 1min24s002, e Button o terceiro, 1min24s013. Até aí, tudo bem. A luta está dura mas dá para ser ganha. Principalmente porque Fernando Alonso, quarto com 1min24s134, e Mark Webber, quinto com 1min24s148, podem acabar embolando a disputa. Ou seja, ninguém está tão ameaçador assim. Então, Q2: é a hora dos pneus macios. Até ali, quem se mostrou mais forte nessa situação foi a Red Bull, mas nos treinos livres se tem tempo para aquecê-los com calma, nas classificações é preciso colocá-los e virar os melhores tempos imediatamente.

Cai a bandeira e a verdade é bem outra: Vettel na frente, com 1min22s914, mais de um segundo mais rápido do que fora Hamilton no Q1, o que comprova um melhor uso dos pneus macios. O inglês também melhora muito, 0s8, mas fica em terceiro com 1min23s172, batido pelo companheiro Button, com 1min23s031. Acima de 1min23s3, Alonso e Webber já não preocupam. É uma batalha direta entre Vettel e os dois McLaren em apenas 10 minutos.

Abrem-se os boxes e o primeiro a sair é Felipe Massa, trazendo Alonso em sua cola. Sem condições de ir além do sexto lugar, superado até pelo surpreendente Renault de Vitaly Petrov no Q1, o brasileiro tem como missão propiciar a Alonso um vácuo que permita à Ferrari se não apagar, pelo menos amenizar a decadência. Arquivada desde antes do Grande Prêmio da Bélgica a suspensão experimentada com sucesso na Inglaterra parece não ter sido a principal arma naquela única vitória de Alonso, e sim a alteração regulamentar do uso dos difusores aquecidos. A manobra funciona, Alonso ganha meio segundo em relação ao Q2. E só. Continua em quarto, distante dos verdadeiros protagonistas.

Massa? Sexto, atrás de um Webber que mais uma vez tinha de se virar sem o problemático KERS da Red Bull mas pelo menos à frente do russo Petrov, que voava na pista. Ele havia atingido nada menos de 344,8 km/hora no ponto de velocidade máxima, superado apenas pela Sauber/Ferrari de Sérgio Perez, que chegou a 349,2 mas largaria em 15º, e pelo Renault de seu companheiro Bruno Senna, que chegou a 347,2. Massa vinha a seguir, com 342,3, enquanto o carro de Vettel, que acabara de fazer a pole com mais de meio segundo de vantagem,  era o mais lento de todos os 24, com risíveis 327,7, quatro quilômetros por hora menos do que o Lotus de Heikki Kovalainen, o 23º e penúltimo.

Mas espera aí, Monza não é o templo da velocidade? Não é lá que a Williams chegou uma vez a testar um carro sem aerofólio traseiro, em seu lugar apenas um leme vertical? Não é lá que se vence chegando a velocidades impensáveis? Não foi lá que em 2005 Juan Pablo Montoya chegou a nada menos de 372,2 km/h? E o Montoya venceu naquele ano. Então como pode acontecer isso?

Essa era a questão: mais uma vez, Adrian Newey e seus engenheiros desafiavam as certezas estabelecidas ao longo dos anos. As relações de marchas, por regulamento, devem ser definidas e relatadas para a FIA até a noite da sexta-feira. Naquela hora, eles já tinham claro em suas cabeças que o melhor seria optar por marchas mais curtas, da primeira à sétima, privilegiando as acelerações. Como base, dois argumentos lógicos.

Primeiro: com aerofólios pequenos, de pouca resistência ao avanço do carro, o ganho de velocidade final era bem menor do que com asas maiores; segundo, o ponto de abertura da asa móvel na reta dos boxes era bem distante da saída da curva Parabólica, que a antecede. Com essas relações curtas, Vettel cresceria rapidamente da Parabólica até o meio da reta, e daí para a frente talvez não restasse tempo para seus seguidores tentarem a ultrapassagem.

Em sua memória, Newey estava possivelmente prestando uma justa homenagem ao mago da Lotus, Colin Chapman, que criou o conceito dos carros asa. Foi ele que provou que a pressão aerodinâmica poderia levar os motores aspirados a superar os insuperáveis motores turbo, ainda nos anos 70. Este mesmo conceito se veria, neste domingo, em Monza: com asas mínimas, o Red Bull de Vettel voava também nas curvas, graças à pressão aerodinâmica conseguida pelo corpo do carro, não pelas asas. Desde os treinos. Button se espantava com a velocidade de Vettel na chicane Ascari e na Parabólia, e também com o equilíbrio na freada para a primeira chicane, onde o alemãozinho chegava a seus 327 e baixava para 80 km/hora.

Mas havia uma condição sine qua non para o ousado plano dar certo: era imperioso que Vettel estivesse mais de um segundo à frente no fim da terceira volta, quando a direção de prova  autorizasse a abertura dos aerofólios. Com velocidade final tão baixa, Vettel se tornaria presa fácil para Alonso, que chegara a 342,2 na reta, a quinta maior velocidade, evidenciando a aposta da Ferrari na velocidade pura. Já os McLaren não ameaçavam tanto: Button, com 3331, fora o 20º e Hamilton, com 332,7, o 21º. A velocidade podia ser semelhante, mas o motivo da escolha era bem diferente: preocupada com o desgaste dos pneus no intenso calor, a McLaren optara por aerofólios grandes para o padrão de Monza.

O imprevisto se deu quando as luzes se apagaram. Do quarto posto, Alonso veio para a direita como um foguete e emparelhou com Hamilton, que mesmo sem fazer a melhor largada de sua vida ainda tinha sido melhor do que Vettel, que deixara suas rodas patinarem demais – talvez em razão das marchas mais curtas. Mas espremido entre Vettel e Alonso, o inglês teve de escolher entre cair para terceiro ou correr o risco de uma batida que não faria muito bem à sua imagem.

Líder na primeira volta, o espanhol provocara a loucura das arquibancadas repletas, mas sabia que sua aposta teria de ser a duração dos pneus. Manter-se em primeiro não seria tão difícil. Bastava sair da Parabólica na frente de Vettel. Com o Safety Car na pista – para que se limpassem os destroços da carambola iniciada por um Vitantonio Liuzzi visivelmente pressionado por estar largando na última fila do grid de Monza –, o espanhol sabia que havia tempo suficiente para que seus pneus atingissem a temperatura ideal. O que ele não esperava, porém, era a agressividade monumental de um Vettel que não se satisfaz com a proximidade do título e ainda luta pela vitória como se fosse a primeira do ano.

Uma ultrapassagem como aquela no começo da corrida poderia ter significado que nada mais havia a ser visto naquele domingo. Ledo engano. Pouco antes de Vettel humilhar um piloto da Ferrari em Monza, um outro ídolo da massa italiana revivia seus grandes momentos. Oitavo no grid, Schumacher havia pulado para quarto antes do Safety Car entrar na pista, mostrando que o tempo não afetou suas ótimas largadas nem sua espantosa velocidade inicial. Quando o Safety Car saiu, ele entrou na reta dos boxes colado em Hamilton e assumiu o terceiro lugar. Daí para a frente, o mundo pôde enfim ver respondida uma pergunta que todos se faziam: como se comportaria o velho campeão diante da nova geração? Com muito brilho, eis a resposta.

Hamilton vs Schumacher - Monza 2011

Hamilton vs Schumacher – Mercedes com asa traseira minúscula

Certo é que a velocidade do Mercedes, sem abrir a asa, superava por três a quatro quilômetros a da McLaren, mas isso era na reta dos boxes, mais longa. Na mais curta, que vai da segunda curva de Lesmo à freada da Ascari, a vantagem era do carro inglês; e de nada adiantava. Nas freadas, o parco equilíbrio proporcionado pelo aerofólio mínimo, todo o talento do heptacampeão surgia, gritante. Um único erro permitiu a Hamilton passar à frente, mas a posição foi retomada metros depois. Não se negue os velhos métodos duros de defender sua posição foram todos usados, vez ou outra exageradamente. Ao ponto do diretor de prova cobrar mais parcimônia, o que acabou permitindo a Hamilton superar o velho campeão. Mas isso só ocorreu na 27ª volta, quando o mundo todo já cantava ôôô, o campeão voltou, o campeão voltou.

Daí para a frente, Hamilton voou, mas não recuperou o enorme tempo perdido atrás do alemãozão. Chegou em quarto, seu único consolo foi fazer a volta mais rápida da corrida. Com mais um giro, teria sem dúvida tirado de Alonso o terceiro degrau do pódio. Mas Monza não merecia deixar de ver um macacão vermelho saudando a multidão de fiéis lá de cima. Nem a McLaren merecia ter lá seus dois pilotos. Só Button tinha méritos para estar lá depois de mais uma corrida de gênio.

Sexto no início, aproveitou a batida de Webber em Massa para chegar a quarto, esperou o momento em que Hamilton teria de aliviar o acelerador por causa das fechadas de Schumacher e, uma vez à frente de seu companheiro, superou o alemão por fora metros mais tarde, na freada da entrada da segunda chicane. Passou Alonso na primeira oportunidade, sabendo que os pneus duros recém instalados deixariam a Ferrari lenta na saída da primeira chicane e nem se deu mais ao trabalho de olhar para trás. Uma bela maneira de comemorar a renovação de seu contrato por mais um ano. Um só, como ele queria, já que será bom estar livre ao fim de 2012, quando os contratos de Webber e de Massa chegam ao fim.

Massa que, aliás, fez uma boa corrida, dentro do que poderia esperar depois de ser abalroado por Webber na relargada. Caiu para 12º e na mesma volta recuperou duas posições, chegou rapidamente a sexto e lá ficou. Não poderia ter feito mais. Como não poderia Rubens Barrichello. Obrigado a parar nos boxes para substituir o bico quebrado no melée da primeira curva, caiu para as calendas e terminou em 13º, perto de seu companheiro Pastor Maldonado, que, ao contrário de Rubinho, se beneficiou da batida inicial para fechar as primeiras voltas em sexto.

Já Bruno Senna merece um capítulo à parte. Décimo no Q1, décimo no Q2, optou por não entrar na pista no Q3 em busca de uma posição que não poderia ser muito melhor. Isso porque havia sido obrigado a usar três jogos de pneus macios e já não dispunha de nenhum novo. Na corrida, largou com os duros, trocou pelos macios durante o período de Safety Car e fez toda a corrida propriamente dita com os macios. Colheu os lucros no fim da prova, quando todos os adversários eram obrigados a usar os duros, cerca de um segundo por volta mais lentos. Com isso, conseguiu o nono lugar com uma bela ultrapassagem, no limite, na freada da primeira chicane. Marcou seus primeiros pontos e provou sua maturidade e rápida evolução em uma pista tão exigente quanto tradicional.

Em fim, uma corrida inesquecível, marcada por atuações soberbas de três gerações: a de Schumacher, a de Vettel e a de Bruno Senna.

Viva Monza, viva a Catedral.

Lito Cavalcanti

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