F1 – A rainha da velocidade

quarta-feira, 4 de março de 2020 às 13:38

Hellé Nice

Colaboração: Antonio Carlos Mello Cesar

Periferia miserável da cidade de Nice, França, o prédio decadente, imundo, residência para paupérrimos franceses e imigrantes, abriga no porão, uma velha senhora completamente esquecida: Marriette Hélène Delangle, a outrora célebre Hellé Nice, rainha da velocidade.

Não raro podia-se ver aquela idosa nos corredores sombrios, faminta, retirando leite de pires, deixados pelos moradores para atrair gatos, predadores naturais dos roedores que infestavam o local. Morreu, ali mesmo, numa tarde fria do mês de Outubro, 1984, entre as paredes da arruinada edificação, debruçada sobre acumulo de fotos e jornais antigos, atestando um passado glorioso.

Grand Prix pioneiro de Monthéry só para mulheres, 1929. Precedida pela fama, a bela dançarina e stripper dos luxuosos cabarés parisienses, Hellé Nice, conhecida no país inteiro pela performance no hit musical, Les Ailes de Paris, ao lado de Maurice Chevalier, é a grande atração da corrida.

Dirigindo um Omega-Six, auto de competição fabricado na França entre 1922 e 1930, apesar da noite anterior recheada de champanhe, sexo, morfina (droga usada à época), vence e bate o recorde do circuito. O corpo fatigado, mãos cheias de bolhas, devido à dureza do veículo, não lhe tira o charme, faz pose, retoca maquiagem, encanta todos ao redor.

O Barão de Rothschild, próspero banqueiro, enamorado da musa piloto, convence Ettore Bugatti a ceder um carro para Nice. Desta forma começa competir no circuito mundial, ao lado dos maiores nomes do seu tempo, Tazio Nuvolari, Rosemeyer, Rudolf Caracciola, Louis Chiron. Ademais, captura o coração de Gianoberto Carlo Bugatti, filho do poderoso fabricante automotivo.

Boa de braço, pé pesado, encara os marmanjos de igual para igual. No GP de Marseille, após disputa pelo nono posto chega à frente de Tazio Nuvolari. Monza (1933) não se intimida com as mortes de Giuseppe Campari, Mario Borzachini, do Conde polonês Czai Kovski, ocorridas durante a prova, larga no décimo sétimo lugar, consegue varias ultrapassagens, termina em nono.

Dona de indizível notoriedade, estampa sua imagem na publicidade dos cigarros Lucky Strike, contratos com a Petrolífera Esso, entre outras rendas, tornam-na, também, uma moça independente, no mundo extremamente masculino daquele período. Mulheres não tinham sequer o direito de votar.

Julho de 1936, Hellé Nice, vinda do Rio de Janeiro, desembarca em São Paulo, não sem antes chocar recatadas moçoilas, desfilou pela praia carioca usando escandaloso maiô de duas peças (biquíni popularizou-se 20 anos depois). fumava publicamente, ato abominável para senhora educada. Na capital paulista, meio a recepção digna de star hollywoodiana, usou de simpatia ao declarar: “Estou encantada, o Brasil é um país maravilhoso”.

Primeiro GP Cidade de São Paulo, Interlagos estaria pronto somente em 1940. Para o evento foi improvisado um temerário circuito nas ruas do bairro Jardim América, tendo como foco principal a reta da av. Brasil, onde as máquinas ultrapassavam os 210 km/h e milhares de pessoas iriam aglomerar-se sem um pingo de segurança.

Ao longo da corrida os italianos, com as possantes Alfas preparadas pela Ferrari, atestam o favoritismo, Pintacuda lidera seguido pelo compatriota Attilio Marinoni, Hellé Nice pilotando uma Alfa Romeo independente e cem HP a menos, mantém o terceiro posto. Não muito distante quarto lugar, o brasileiro Barão de Teffé, vencedor no ano de 1933 da prova na Gávea.

Giro cinquenta, o bólido azul da francesa visita o boxe, hora de colocar água e gasolina, perde a terceira colocação, trinta segundos, diferença que a separa de Teffé. Busca recuperação, acelera fundo, diminui a lonjura, vem tirando cinco segundos por volta, finalmente encosta e pega o vácuo na reta. Teffé de Alfa Romeo fecha a porta com descaro, não podia se permitir a vergonha de ser ultrapassado por uma mulher em solo natal.

Última e derradeira curva, Hellé Nice após ameaçar pelo lado externo, toma a linha interna, Teffé espreme sua oponente, ela atinge os fardos de feno, o carro decola, atropela algumas pessoas. A piloto é arremessada pra fora do veículo, seu corpo choca-se contra um soldado, que vem a falecer. Tumulto, correria, gente pisoteada, caos; quatro mortos, trinta e sete feridos, rescaldo da tragédia.

Socorrida ao Sanatório Santa Catarina com grave lesão na cabeça, escoriações, traumas diversos, Nice acaba por recuperar-se, mas não tem a menor lembrança do acidente.

Inicio da Segunda Guerra Mundial, 1939, tropas de Hitler invadem a Polônia, trevas e morte tomam conta da Europa, milhões de pessoas iriam perder a vida nos próximos seis anos, principia o Holocausto. Ano seguinte, 1940, soldados e blindados alemães transpõe a linha Maginot, ocupando o território francês em apenas quarenta e seis dias. O país capturado assina rendição.

Cidadãos gauleses sofrem todo tipo de restrição à liberdade, prisões, matança anárquica, racionamento, pobreza e fome. Hellé Nice, enquanto espera o final dos conflitos, vive de forma opulenta numa suntuosa mansão aos pés do Mediterrâneo, região da Côte d’Azur, na companhia do jovem amante Arnaldo Binelli, sem ser incomodada pelos nazistas.

O Rally de Monte Carlo, 1949, marca a volta das competições na França pós-guerra, Hellé Nice prepara seu retorno às pistas. Uma grande festa antecede o evento, Louis Chiron, piloto monegasco, talento inegável, vinte e uma vitórias nos Grand Prix de 1928 até então, sujeito egocêntrico, cuja biografia pode ser resumida numa frase, de gigolô a piloto de F1, acusa publicamente a rainha da velocidade como colaboradora do regime nazista.

Impedida de participar do rally, época de caça aos traidores, teve início rigorosa investigação, nenhuma prova ou testemunho ligavam a ex-dançarina as odes Hitlerianas. Todavia o boato persistiu e a França dificultou ao máximo sua vida, além de mantê-la em total ostracismo.

Por décadas ninguém mais soube quem era Hellé Nice, que viveu a frente de seu tempo e morreu solitária. Inteligente e complexa, valente e determinada, veloz como o Falcão Peregrino.

Antonio Carlos Mello Cesar
São Paulo – SP

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