Valeu campeão

quinta-feira, 27 de novembro de 2014 às 12:32
Senna na McLaren

Senna na McLaren

Colaboração: Mauro Rosito d´Avila

Escrevi este texto já faz alguns anos, mas deixei-o guardado na gaveta por motivos próprios. Toda vez que preciso enfrentar um novo desafio, que me sinto pressionado pelas dificuldades impostas pela vida, me vem a mente ele, mestre em encarar desafios, enfrentá-los, vencê-los e quando isso se mostrasse impossível, não aceitar a derrota passivamente, e sim procurar os motivos pelos quais não conseguiu superá-los.

A capacidade de concentração, a busca incessante da perfeição, o mau humor e o resmungo de quando as coisas não aconteciam como ele queria, a vontade de superar tudo e a todos dentro das regras, respeitando o jogo, e o mais importante, a permanente e incansável vontade de superar seus próprios limites e recordes, sempre me fascinaram.

Este texto foi escrito meses após seu trágico desaparecimento. Morte para aqueles que simplesmente olhavam a F1 como um simples esporte. Tenho certeza que para uma legião de aficionados, que não apenas olhavam a F1, mas que viviam e vivem a F1, com seus desafios, sua incansável busca de novos limites, da precisão, da tecnologia de ponta, ele não morreu, ele acompanha cada um de nós no dia a dia, nos ajudando e inspirando a enfrentar desafios. Mais uma vez, obrigado campeão.

“Madrugada de sexta-feira para sábado”.
O rádio-relógio, cuidadosamente e ansiosamente programado, com direito a teste de “pista” e tudo mais para que não haja equívocos ou mal entendidos, desperta. 00h50min minutos da manhã de sábado. O silêncio da madrugada me permite concentração total. Incrível, sinto a adrenalina fluir pelo meu corpo, como se até aquele momento não estivesse dormindo.

Mesmo sabendo que desnecessário, ligo a televisão de forma apressada, para que ela vá aquecendo e não me crie problemas naquela hora tão esperada. Volto apressadamente, tempo suficiente para fazer um rapidíssimo pit stop no banheiro. Nada, absolutamente nada pode me atrapalhar nos 60 minutos seguintes.

Finalmente sento na poltrona, leia-se “cockpit”, e olho fixamente para a televisão. Me ajeito nela como se um cinto de cinco pontas me prendesse ao carro, unindo-nos de forma umbilical. Embora imagens de propagandas familiares para aquele momento, o que vejo na tela está muito longe dali, está do outro lado do mundo, mais precisamente em Suzuka, Japão.

Entra a imagem direta de Suzuka. Se ainda é possível, a adrenalina sobe ainda mais. A respiração fica ofegante, o tremor nas mãos e o suor frio que percorrem meu corpo por baixo do meu “macacão”, são indicadores do meu estado de concentração e ansiedade. Finalmente o tão esperado encontro de dois continentes, de duas almas.

Aparece na tela da televisão “nossa” imagem, sentados no “cockpit”, concentração total, olhos fixos na sinaleira que autorizará a abertura dos boxes. Eu ali sentado no silêncio da madrugada, pois o restante da família não dispensa igual atenção a F-1. Consigo ouvir com nitidez a batida acelerada de nossos corações, o ronco estridente do nosso Honda que nos empurrará além dos 300K/h. Nós dois, tão longe e tão perto que posso ouvir tudo, com uma nitidez cristalina.

O rugido do primeiro motor após a luz verde que autoriza a abertura dos boxes, e a primeira freada forte na grande curva no final da reta, deixa no ar o aroma do combustível e borracha que alimenta nosso íntimo de forma tão necessária, me fazem voltar à “realidade”.

Eu ali, nervoso, olhos grudados na tela do computador para saber a performance dos “inimigos”, pois é assim que nós os vemos, como aqueles que devem ser derrotados, aguardando o melhor momento de entrar na pista e acelerar. Já traçamos nossa estratégia: vamos para pista juntos, assim que os “inimigos” limparem o traçado, deixarem ele mais emborrachado, favorecendo o “grip” de nossas máquinas.

É com você que vou para pista, o melhor, pois é com você campeão que devo medir forças, competir. Aprendo muito com você. Me fascina disputar cada centímetro de freada, tentar acelerar tão logo me seja permitido pela aderência e o arrasto de meu bólido, disputar cada milésimo de segundo com você, o melhor.

Por um instante volto a ouvir meu coração, agora batendo quase na mesma velocidade em que giram estes motores fantásticos da F-1. Penso que se o meu “limitador” de giro não estiver funcionando perfeitamente, corro risco de quebrar. As mãos completamente molhadas e os pés gelados são o complemento do meu estado de concentração e ansiedade.

Queremos acelerar, faz parte de nós acelerar, enfrentar desafios, quebrar recordes, tentarmos ser os melhores, nos superar, ganhar de nós mesmos. No entanto campeão, aprendi com você: a concentração é fundamental, como é fundamental respirar o menor número de vezes possível na tentativa da “fly lap”. Uma respirada a mais pode significar milésimos de segundos a mais. Isto não é permitido a nós.

Volto a me concentrar. Está chegando a hora de irmos para a pista. Os outros, e é assim que os trato, já estão tentando se aproximar de nosso tempo no 1.º treino classificatório. Tentativas desesperadas e inúteis, pois somos os melhores. O título de REI DA POLE não é por acaso. É fruto de nossa determinação, nossa concentração, nossa busca alucinante em sermos os melhores, de não aceitarmos derrotas passivamente.

Me vem a mente os problemas que estamos enfrentando com a nossa Willians. A nova suspensão dianteira deixou o carro arisco demais, e para contorná-lo, estamos mexendo em todo o chão do carro. Mas tal problema não é suficiente para diminuir nossa vontade de acelerar, de vencer, de superar-nos, de não permitir nada aos demais. Queremos tudo, continuamos a querer tudo: o melhor tempo de 6.ª feira, a pole no sábado, a melhor volta, a vitória, o recorde da pista, e o fundamental, sermos mais rápidos que nós mesmos, volta a volta.

A adrenalina chega ao grau máximo. Com os olhos fixos no televisor, de dentro do meu “cockpit” vejo você parado na saída dos boxes. Viseira ainda semi-aberta procurando aquela concentração. Pronto, lá vamos nós rumo a primeira curva. Toda aquela ansiedade é substituída por uma única vontade: acelerar, acelerar e ser o mais rápido possível. Parece que o mundo para, que o tempo não corre. Aquele instante mágico de estarmos ali, nós e a máquinas e os desafios que nos esperam a cada freada, a cada curva a cada retomada, e nós ali, unidos umbilicalmente com o carro como se fossemos uma peça só. E eu ali, freando junto, dobrando junto e acelerando junto. É meu momento mágico.

Tentamos, inconscientemente, já que faz parte de nossa personalidade, sermos mais rápido um que o outro. Mas não adianta, estamos ali, juntos, virando no mesmo tempo, eu e você. Eu sei que você é o melhor, mas eu estou ali com você. Este é o meu momento mágico. Andar com você, disputar com você. Sei que você me permite isso.

Tentamos, mas estamos virando no mesmo tempo de ontem. Mais uma tentativa e um susto! A adrenalina e o coração, que eu pensei já estivessem no máximo, quase triplicam, e eu me pergunto: cadê o maldito do limitador? O suor, que antes era apenas nas mãos, percorre meu corpo por inteiro. Motivo? Na nossa constante busca de superar a nós mesmos, ao sairmos de uma curva rápido demais, a traseira escapa de forma repentina e improvável, provocando uma rodada na pista. Eu penso: esta maldita suspensão dianteira!

Mas até nisso campeão, somos os melhores. Rodamos, controlamos o carro que se mostra indócil, nervoso e aceleramos rumo aos boxes, como se a próxima curva fosse a última de nossa vida e como se o carro estivesse perfeito. Desafios e mais desafios, é assim que encaramos a vida.

Prejuízos: um jogo de pneus e o desperdício de uma volta que poderia ser a da pole.

Mas vamos para pista novamente, não estamos satisfeitos, a missão de sermos melhor que nós mesmos ainda não está cumprida.

Tentamos, aceleramos, buscamos o limite. Mas as condições da pista com o forte calor que está fazendo, piorou, a deixando mais lenta. As informações que nos chegam dos boxes via rádio informam que todos os demais estão mais lentos que o dia anterior. Embora seja um indicador importante, para nós não é motivo suficiente.

Cruzamos a reta dos boxes e a linha de chegada a quase 300 km/h e é nos mostrada a quadriculada. Treino encerrado. Fizemos imediato contato com o boxe para sabermos o tempo de nossa última tentativa. O soco no volante mostra ao mundo nossa insatisfação. Insatisfação com nós mesmos, em não termos conseguido nos superar. Consolo: pole position, o melhor tempo do treino de sábado. Mas no nosso íntimo, não estamos satisfeitos. Lembra campeão, sempre queremos tudo, sempre queremos superar o mais terrível dos adversários: nós mesmos.

Após voltarmos para aos boxes, ainda dentro de meu cockpit olho para o rádio-relógio. 2:05 da manhã! Já se passaram mais de uma hora, e eu que achei que haviam se passado segundos. A adrenalina começa a voltar ao normal, o coração ainda acelerado já está numa faixa de giro que me permite sair do cockpit. Penso que lá no outro lado do mundo, no teu box, o momento deve ser idêntico. Missão cumprida, pole position, mas a insatisfação de não termos sido melhor que nós mesmos. Vamos para nosso momento de reflexão, você lá no motor home da equipe e eu no abandono da madrugada. Onde erramos, onde não conseguimos nos superar, será que fornecemos informações erradas a respeito do carro, da pista aos engenheiros da equipe? Eu ali, no escuro da madrugada estou verificando, junto com você aí no boxe, a telemetria de nosso carro. Será que as informações prestadas pela tecnologia são mais precisas que as nossas?

Tenho certeza campeão, que não.

Desligo a televisão e o frenesi dos treinos é substituído pela tranquilidade da madrugada. O silêncio me invade, e aquela sensação de estar faltando alguma coisa me acompanha. Mas amanhã tem mais. Temos mais desafios e objetivos a superar.

Obrigado campeão. Obrigado por estes instantes mágicos, obrigado por estas jornadas maravilhosas, obrigado por me permitir sonhar.

Tenho certeza que de lá, onde estiveres, continuaremos nossa disputa, continuaremos a acumular poles e vitórias. Campeão, ídolos não morrem, se perpetuam na imagem, nos sonhos e na alma de seus admiradores. Obrigado por me permitir acelerar com você e ter meus momentos mágicos.

Mauro Rosito d´Avila
Porto Alegre, RS

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