Reis da Chuva 5: FAROESTE NA TERRA DO SOL NASCENTE

segunda-feira, 22 de novembro de 2010 às 19:05
Niki Lauda

Medo. Niki Lauda alinhou sua Ferrari na terceira posição do grid de largada do Grande Prêmio do Japão de 1976 mordendo os lábios. Chovia muito no perigoso circuito de Monte Fuji, onde se decidiria o campeonato mundial de F-1. O adversário de Niki na luta pelo título era James Hunt, que estava com três pontos de desvantagem na tabela; mas seu verdadeiro inimigo era muito mais íntimo.

Fazia pouco mais de três meses que Lauda havia destruído sua Ferrari no antigo circuito de Nurburgring, restando inerte entre os destroços enquanto seu carro ardia em chamas. Foi internado na UTI em estado grave, com queimaduras na face e nas mãos, e os pulmões cheios de gases tóxicos, inalados da combustão. Como a ave mitológica Fênix, renasceu das cinzas (literalmente, porque havia recebido a extrema unção!) para defender seu título mundial, num campeonato que havia dominado desde o início.
Quando se vê a morte tão de perto, passa-se a dar mais valor à vida. Por isso, Lauda largou naquela prova cauteloso até demais, deixando todo mundo passar. Na frente, o pole position Mario Andretti manteve a calma, não se assustando quando um endiabrado James Hunt pulou na frente.

Com a McLaren M23 acertada por Emerson Fittipaldi um ano antes, Hunt saiu do meio da turma para a disputa do título em algumas poucas corridas. O playboy número 1 do automobilismo aproveitou o infortúnio de seu amigo Lauda para arrebatar vitórias importantes. Contrariando qualquer expectativa, tinha reais chances de ser campeão do mundo, ainda mais depois de Lauda abandonar a prova logo na terceira volta.

O asfalto escorregadio e quebradiço da pista, somado a uma intensa névoa, acabou com a resistência emocional do austríaco. Ele encostou seu carro nos boxes e seguiu para o paddock; a Ferrari ameaçou soltar uma nota oficial alegando falha mecânica, mas o pragmático piloto afastou qualquer dúvida.

Lauda abandona

“Foi medo mesmo”, admitiu para quem quisesse ouvir. Apesar de outros pilotos terem feito o mesmo (incluindo Fittipaldi e José Carlos Pacce), a passional imprensa italiana jamais o perdoaria por este ato. Hunt ainda precisava chegar em quarto para conquistar o título, o que não seria fácil naquelas condições. Ainda mais quando a March laranja do destrambelhado Vittorio Brambilla encheu seus espelhos retrovisores. Fora da pista, o inglês sempre foi um sujeito desleixado e para lá de à vontade. Circulava com as maiores gatas, usualmente vestindo shorts e chinelos de dedo. Tinha bordado no macacão antichamas o prosaico lema: “Sex: the breakfast of champions” (Sexo: o café da manhã dos campeões). Desde sua estréia na F-1, pela equipe particular do lorde britânico Sir Alexander Hesketh, Hunt vivia uma vida de baladas e mais baladas. O que pouca gente lembra é o quanto ele ficava nervoso antes e durante as provas. Aquela vida de excessos agravava seus problemas gastro-intestinais, fazendo-o tremer nas bases antes de entrar no carro.

Em Fuji, Hunt lutou como pôde, junto com Lauda, para adiar a largada o máximo possível, na esperança do tempo melhorar. Conseguiram empurrar o sinal verde por mais de duas horas, mas perderam a luta contra os chefes de equipe e os promotores da primeira corrida de F-1 na terra do sol nascente.

Quando o “Gorila de Monza” começou a dar totós em sua McLaren, Hunt previu o pior. Brambilla havia vencido o último duelo entre os dois, numa situação bastante similar (confira Reis da Chuva 3). Dessa vez, porém deu a lógica, e o italiano acabou rodando, indo passear pela grama encharcada. Aquela água toda acabaria por levar-lhe ao abandono, por pane elétrica. Após 20 voltas, já sem chuva, a pista começou a secar. Os pneus biscoito se desgastavam rápido naquele asfalto abrasivo, trazendo a Hunt o fantasma de ter de fazer um pit stop não planejado. Naquela época, paradas nos boxes não eram o espetáculo coreografado de hoje, quando mecânicos supertreinados são capazes de trocar pneus e abastecer o carro em segundos. A idéia do então chefe de equipe da McLaren, Ted Mayer, era a de manter Hunt na pista, “custe o que custar”.

Como muitos pilotos haviam abandonado a disputa até então, o inglês não hesitou em deixar Patrick Depailler ultrapassá-lo. A jogada era chegar entre os quatro primeiros e levar o caneco. Depailler pilotava a famosa Tyrrel de seis rodas e, com 11 voltas para acabar a corrida, parecia perto de conquistar sua primeira vitória na categoria. Mas seus pneus não resistiram, e uma parada nos boxes fez-se necessária; a liderança, então, caiu nas mãos de Andretti, com Hunt em segundo. O título ainda parecia seguro; daí…

Hunt no aguaceiro

Um estrondo: o pneu dianteiro esquerdo da McLaren desintegrou-se pouco antes da reta dos boxes. Hunt imediatamente mergulhou para o pit, tendo que assistir seus mecânicos desesperadamente levar mais de trinta segundos para fazer a troca. O loiro ficou possesso, gesticulando e xingando todo mundo, enquanto seus adversários cortavam a reta. Saiu dos boxes em quinto lugar, uma volta atrás do líder.

Mario Andretti

Andretti estava dando uma aula para a molecada. Do alto de seus 36 anos, soube conservar seus pneus de chuva enquanto os outros enfrentavam problemas. Conduziu seu Lótus de forma rápida e constante, evitando as arapucas de uma pista traiçoeira com a frieza de um campeão (como viria a ser, dois anos mais tarde). Nascido na Itália em 1940, Andretti teve que viver com sua família num campo de desabrigados quando sua terra natal, Trieste, foi anexada pela Iugoslávia no fim da Segunda Guerra Mundial. Partiu para os EUA com quinze anos de idade, sem qualquer perspectiva a não ser a de encontrar um melhor lugar para viver. Acabou desafiando os perigos do automobilismo local para fazer sua vida, colecionando títulos e muitos dólares.

Em 1976, já havia conquistado as 500 milhas de Indianápolis, na Fórmula Indy, e as 500 milhas de Daytona, a mais prestigiosa corrida do calendário da Nascar. Estava pronto para ir atrás de seu sonho de menino, o título mundial de Fórmula 1. Naquele GP do Japão, sabia que venceria a corrida desde o momento em que reconquistou a liderança. Mais atrás, o bem nascido James Hunt vinha como um louco para cima dos adversários. Como havia perdido a comunicação com os boxes, não tinha idéia de qual era sua posição; para piorar, já estava anoitecendo, e a visibilidade piorava a cada volta.

A Ferrari de Regazzoni, que vinha em terceiro lugar, também teve problemas de pneu e começou a despencar na classificação. Hunt não sabia que estava em quarto e partiu para uma luta suicida com a Surtees da Alan Jones, ultrapassando o australiano na última volta, recebendo a bandeirada espetacularmente em terceiro! O novo campeão parou nos boxes furioso e, justamente quando partia em direção de Ted Mayer para quebrar-lhe a cara pela tática infeliz, percebeu que a multidão que o cercava não o estava vaiando, mas sim o aplaudindo pelo título!

Aquela tensão toda havia sido demais. Hunt passou toda a entrevista coletiva com um saco de vômito ao seu lado. Mario Andretti, um verdadeiro cow-boy de filme de bang-bang à italiana, assistiu a cena com descrédito. Os repórteres perguntaram ao vencedor da prova o que ele achava da decisão de Niki Lauda de abandonar a corrida decisiva por causa da chuva.

“Pelo título mundial, correria até no topo gelado do Monte Fuji. Sou piloto, não poeta”, declarou. O primeiro Grande Prêmio do Japão entrou para a história como a prova de coragem de três grandes pilotos. Aquele que admitiu seu medo; aquele que lutou pelo improvável; e aquele que nunca temeu o perigo. Um verdadeiro enredo de filme de faroeste há muitos quilômetros do deserto do Arizona.

GRANDE PRÊMIO DO JAPÃO DE 1976 – Classificação Final

Cla Piloto Carro / Motor Voltas Tempo Atraso/Abandono
1 Mario Andretti Lotus/Ford 73 1:43min58s86
2 P.Depailler Tyrrell/Ford 72 1:43min59s14 1 Volta
3 James Hunt McLaren/Ford 72 1:44min00s06 1 Volta
4 Alan Jones Surtees/Ford 72 1:44min12s07 1 Volta
5 Clay Regazzoni Ferrari 72 1:44min18s76 1 Volta
6 Gunnar Nilsson Lotus/Ford 72 1:44min18s92 1 Volta

Autor: Olavo Bittencourt (oobn21@hotmail.com)

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