MotoGP – Involução

quarta-feira, 1 de abril de 2020 às 12:18

Ducati – MotoGP

Colaboração: Carlos Alberto Goldani

Em tese, o campeonato mundial de motovelocidade deveria ser um laboratório de pesquisas, estimular o desenvolvimento de tecnologias que pudessem ser revertidas em lucros após serem transferidas para as motos comerciais. Administrado por quatro entidades, Federation Internationale de Motocyclisme (FIM), Dorna Sports S.L. (comercialização), International Road Racing Teams Association (IRTA – equipes participantes, fornecedores & patrocinadores), Motorcycle Sports Manufacturers’ Association (MSMA – fabricantes) e utilizando a marca registrada de sua classe principal, MotoGP, é a categoria máxima do motociclismo e o mais antigo campeonato do mundo de esportes motorizados – o primeiro ano de competição oficial aconteceu em 1949.

Aos poucos mudaram as características que orientaram a competição, nem sempre em busca de contribuições tecnológicas criativas. As entidades administradoras entenderam que, sem condições reais de disputa, as equipes privadas sem orçamentos robustos teriam dificuldades em conseguir patrocínios e abandonariam o grid. Em 2011 a Suzuki, que fez história com Barry Sheene em 1976/1977 e conseguiu seu último mundial em 2000 com Kenny Roberts Jr., retirou-se da competição alegando um crescimento de despesas sem nenhuma contribuição significativa para a sua linha de produção comercial (a fábrica japonesa retornou em 2015).

Entre as temporadas de 2011 e 2015 foram realizadas 89 provas, vencidas exclusivamente pelas equipes oficiais da Honda (55) e Yamaha (34). A principal razão desta hegemonia das fábricas nipônicas foram os investimentos em software embarcado, que facilitavam extraordinariamente o trabalho dos pilotos. Em 2016 o regulamento obrigou o uso da ECU (central eletrônica padronizada) para todos os participantes, na época Honda e Yamaha disseram que era um retrocesso colossal, Valentino Rossi chegou a comparar a eficiência do hardware/software da Magneti Marelli com o que sua máquina utilizou mais de 10 anos atrás. Simultaneamente no mesmo ano houve a troca de fornecedor exclusivo de pneus (saiu a japonesa Bridgestone e entrou a francesa Michelin). Os resultados foram imediatos, na temporada de 2016 aconteceram vitórias de 9 pilotos diferentes pilotando protótipos de 4 fabricantes (Honda, Yamaha, Ducati e Suzuki).

O sucesso da iniciativa, que ao restringir o uso de tecnologia elevou o nível de competitividade, animou as equipes com menor capacidade financeira e criou problemas para os projetistas. O engessamento das características dos protótipos não permite grandes exercícios de criatividade, todos os ganhos de desempenho têm que explorar áreas não muito detalhadas (zonas cinzentas) do regulamento geral da competição.

Como sempre acontece, dificuldades são quase sinônimo de oportunidades. A Ducati concordou em compartilhar resultados e participou ativamente no desenvolvimento e testes da ECU padronizada. A recompensa surgiu quando a Magneti Marelli apresentou o conjunto de hardware/software para ser utilizado compulsoriamente por todos os participantes, os protótipos produzidos em Borgo Panigale foram os que melhor aproveitaram os recursos que a novidade tinha a oferecer. Após um período de ostracismo entre 2011 e 2015 depois da era Stoner sem frequentar o degrau mais alto do pódio, a equipe Ducati voltou a vencer, inclusive se credenciando como uma das principais aspirantes ao título.

As reclamações da Yamaha e Honda foram procedentes. Comparado com as funções abrangentes e específicas dos softwares proprietários das fabricantes, o produto da Magneti Marelli é simplório. A versão tornada obrigatória em 2016 implementa anti-wheelie, aceleração, freio motor e controle de tração, utilizando basicamente a limitação da potência do motor de uma maneira muito simplista, dificultando a condução da moto. Exemplificando, na retomada de velocidade com o software proprietário, o piloto abria totalmente o acelerador nas retomadas de velocidade e a eletrônica controlava a dosagem ideal para não permitir que a roda traseira girasse em falso. A versão obrigatória atual trabalha no resultado coletado por sensores, se a roda motriz excede a capacidade do grip, o software comanda uma redução de potência cortando a ignição de um ou mais pistões. O resultado não é apropriado, o torque é reduzido de uma maneira agressiva prejudicando os tempos por volta.

Em uma competição quase sempre decidida na casa de centésimos ou milésimos de segundo, qualquer vantagem é significativa e os engenheiros da Ducati descobriram que a engenharia reversa do software da Magneti Marelli pode ser útil, utilizando soluções mecânicas e a habilidade dos pilotos para substituir as decisões do computador. O anti-wheelie, por exemplo, foi endereçado na aerodinâmica das motos, a solução mais óbvia foi a utilização de asas (winglets) para criar downforce na roda dianteira. Todas as equipes acabaram copiando a ideia, os protótipos da MotoGP ficaram com o aspecto semelhante aos bandidos dos filmes mexicanos, todos com enormes bigodões. A gestão da MotoGP acabou banindo os apêndices alegando falta de segurança e a aerodinâmica passou a ser gradativamente integrada à carenagem do quadro.

A ausência de um equipamento muito superior aos demais aumentou a importância de pequenos ganhos de desempenho. Desde o final de 2018 alguns equipamentos Ducati utilizam o holeshot, um dispositivo mecânico que aumenta a eficiência na largada. Com uma chave manual o piloto aciona um mecanismo hidráulico que reduz a altura da suspensão traseira, proporcionando maior grip na roda motriz. O mecanismo atua de modo a iludir o controle de aceleração da ECU, o ganho é mínimo, só funciona durante a reta de largada e pode ajudar a colocar o equipamento na liderança por milésimos de segundo, que podem ser valiosos no final de uma prova. Este tipo de recurso já era utilizado no Motocross e como toda a novidade está sujeito a falhas. No GP de Silverstone em 2019, a reta de largada curta limitou a ação dos freios, a desaceleração não foi suficiente para desarmar o mecanismo de Jack Miller, que perdeu muito tempo ao percorrer as primeiras curvas com a suspensão baixa. Existe também um problema que fatalmente vai acontecer, Aprilia e Yamaha já estão testando um dispositivo semelhante e é provável que a Honda também tenha algo neste sentido, ou seja, a pequena vantagem atual da Ducati tem seus dias contados. Considerando que o pior lugar para haver um acidente é a primeira curva depois da largada onde 22 motos estão acelerando muito próximas umas das outras, qualquer acidente pode ser muito complicado. Se todos os fabricantes têm um ganho semelhante e sua utilização pode potencializar problemas, é provável que seja banido pelo regulamento.

Na primeira prova da temporada passada (2019) as GP19 da Ducati apresentaram outra novidade, uma “colher” montada no braço oscilante alegadamente para esfriar o pneu traseiro, na verdade uma maneira de aumentar o downforce para manter a roda motriz em contato com o asfalto nas velocidades mais altas, durante a aceleração e durante a frenagem. Foi uma maneira que a Ducati encontrou para aproveitar omissões do regulamento e burlar o software simplista da ECU que controla a tração, principalmente no uso do freio-motor. O controle de frenagem do motor tem por finalidade fornecer a quantidade correta para ajudar a retardar a moto e permitir a troca de direção nas curvas. Sua atuação é abrindo e fechando os corpos do acelerador no sistema de injeção de combustível para aumentar ou diminuir a rotação. Com muita frenagem do motor e o pneu traseiro derrapa, com pouca a moto não desacelera o necessário. Melhorar o contato entre pneu/asfalto na traseira da moto aumenta a aderência e permite maior eficiência freio-motor. O resfriamento dos pneus também é importante porque a especificação do controle de tração atua sobre o giro das rodas que, se for excessivo, sobreaquece e degrada os pneus rapidamente.

Nas últimas etapas da temporada passada a Ducati introduziu um novo recurso hidráulico/mecânico para usar a Lei de Gerson, “Levar vantagem em tudo”. Um mecanismo semelhante ao que já foi utilizado em equipamentos para Mountain Bike e é chamado pela mídia europeia de metamorfo, funciona de modo muito semelhante ao holeshot, comprimindo o amortecedor traseiro para baixar o centro de gravidade da moto. O dispositivo atua em duas áreas, quando acionado (baixa a suspensão traseira) colabora com o anti-wheelie, quando liberado altera o perfil aerodinâmico reduzindo o arrasto para alcançar a velocidade máxima. Também neste item não há propriamente uma inovação, é exatamente o que fazem as asas da Fórmula 1.

Existem duas maneiras de interpretar o regulamento da competição, (1) a leitura convencional e utilizar tudo o que é permitido e (2) aproveitar todos os recursos que não são expressamente proibidos. Os engenheiros da Ducati optaram pela segunda opção com uma leitura criativa das regras, resgatando conceitos que já haviam sido adotados em outras competições (Motocross, Mountain Bike e Fórmula 1) para desenvolver mecanismos que, associados com a habilidade dos pilotos, possam burlar as limitações da ECU Magneti Marelli. A fábrica italiana não poupa esforços para fornecer aos seus pilotos equipamentos para tentar quebrar a hegemonia da Honda.

Carlos Alberto Goldani
Porto Alegre – RS

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